terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Feres Khoury
Airton Ribeiro

Para Airton Ribeiro e Feres Khoury, amigos e artistas, que me apresentaram e reapresentaram a Kavafis.


ÍTACA
Constantino Kavafis
Tradução de José Paulo Paes

Se partires um dia rumo à Ítaca
Faz votos de que o caminho seja longo
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem lestrigões, nem ciclopes,
nem o colérico Posidon te intimidem!
Eles no teu caminho jamais encontrarás
Se altivo for teu pensamento
Se sutil emoção o teu corpo e o teu espírito tocar
Nem lestrigões, nem ciclopes
Nem o bravio Posidon hás de ver
Se tu mesmo não os levares dentro da alma
Se tua alma não os puser dentro de ti.
Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
Nas quais com que prazer, com que alegria
Tu hás de entrar pela primeira vez um porto
Para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir. Madrepérolas, corais, âmbares, ébanos
E perfumes sensuais de toda espécie
Quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrinas
Para aprender, para aprender dos doutos.
Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas, não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
E fundeares na ilha velho enfim.
Rico de quanto ganhaste no caminho
Sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu
Se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência.
E, agora, sabes o que significam Ítacas.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Cão como nós

Como nós eras altivo

fiel mas como nós

desobediente.

Gostavas de estar connosco a sós

mas não cativo

e sempre presente-ausente

como nós.

Cão que não querias

ser cão

e não lambias

a mão

e não respondias

à voz.

Cão

Como nós.



(Sei muito bem que as pessoas saem dos retratos, sei isso desde pequeno, mas tu não, estás proibido de voltar a fazer o que fizeste esta noite, não posso entrar na sala e ver outra vez a tua moldura vazia.)




Cão como nós, Manuel Alegre, editora Agir, 2007.

sexta-feira, 27 de março de 2009


O outono de Goya.
E mais não digo. Não haveria porquê.

sexta-feira, 13 de março de 2009


Durante muito tempo, incessantemente, procurei o gosto, o verde em seus vários tons, o cheiro, a calda - com sua fluidez viscosa - do doce de laranja da minha infância. Em viagens, as mais diversas, em restaurantes, os mais díspares, em casas de conhecidos e amigos, sempre que a ocasião surgia, eu os buscava.
Até que um dia, anos atrás, uma amiga me apresentou e me fez provar a Omelete de amoras, de Benjamin. Agradecida, pude, então, descansar.



Omelete de Amoras

Esta velha história, conto-a àqueles que agora gostariam de experimentar figos ou Falerno, o borscht ou uma comida camponesa de Capri. Era uma vez um rei que chamava de seu todo poder e todos os tesouros da Terra, mas, apesar disso, não se sentia feliz e se tornava mais melancólico de ano a ano. Então, um dia, mandou chamar seu cozinheiro particular e lhe disse: "Por muito tempo tens trabalhado para mim com fidelidade e tens me servido à mesa os pratos mais esplêndidos, e tenho por ti afeição. Porém, desejo agora uma última prova de teu talento. Deves me fazer uma omelete de amoras tal qual saboreei há cinqüenta anos, em minha mais tenra infância. Naquela época meu pai travava guerra contra seu perverso vizinho a oriente. Este acabou vencendo e tivemos de fugir. E fugimos então, noite e dia, meu pai e eu, até chegarmos a uma floresta escura. Nela vagamos e estávamos quase a morrer de fome e fadiga quando, por fim, topamos com uma choupana. Ali morava uma vovozinha que amigavelmente nos convidou a descansar, tendo ela própria, porém, ido se ocupar do fogão, e não muito tempo depois estava à nossa frente a omelete de amoras. Mal tinha levado à boca o primeiro bocado, senti-me maravilhosamente consolado, e uma nova esperança entrou em meu coração. Naqueles dias eu era muito criança e por muito tempo não tornei a pensar no benefício daquela comida deliciosa. Quando mais tarde mandei procurá-la por todo o reino, não se achou nem a velha nem qualquer outra pessoa que soubesse preparar a omelete de amoras. Se cumprires agora este meu último desejo, farei de ti meu genro e herdeiro de meu reino. Mas, se não me contentares, então deverás morrer." Então o cozinheiro disse: "Majestade, podeis chamar logo o carrasco. Pois, na verdade, conheço o segredo da omelete de amoras e todos os ingredientes, desde o trivial agrião até o nobre tomilho. Sem dúvida, conheço o verso que se deve recitar ao bater os ovos e sei que o batedor feito de madeira de buxo deve ser sempre girado para a direita de modo que não nos tire, por fim, a recompensa de todo o esforço. Contudo, ó rei, terei de morrer. Pois, apesar disso, minha omelete não vos agradará ao paladar. Pois como haveria eu de temperá-la com tudo aquilo que, naquela época, nela desfrutastes: o perigo da batalha e a vigilância do perseguido, o calor do fogo e a doçura do descanso, o presente exótico e o futuro obscuro." Assim falou o cozinheiro. O rei, porém, calou um momento e não muito tempo depois deve tê-lo destituído de seu serviço, rico e carregado de presentes.



Walter Benjamin, em Imagens do Pensamento, Rua de mão única, Obras escolhidas II. Ed. Brasiliense, 1987

Imagem: Gustave Doré

segunda-feira, 9 de março de 2009


Em caso de necessidade, nada melhor do que o conforto e a consolação do poeta. Em outros casos também.


Consolo na praia

Carlos Drummond de Andrade, em A Rosa do Povo

Vamos, não chores...
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
Em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicratizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-se, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.


quarta-feira, 4 de março de 2009


Kant (relido)
Orides Fontela

Duas coisas admiro: a dura lei
cobrindo-me
e o estrelado céu
dentro de mim
Imagem: Balthus

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Ô, abre alas, que eu quero passar...

A foto deve ser de 1940, por aí. Eu ainda não existia, mas o carnaval em casa já era comemorado.

Fomos todos ninados ao som de Jardineira, Touradas de Madri, Linda morena, Ta-Hí, Aurora, Bandeira Branca, Chiquita Bacana, Pastorinhas, Linda loirinha, Pierrô apaixonado... eu também sou da lira, não posso negar. Salve Lamartine, Braguinha, Max Nunes, Mario Lago, Ary Barroso, Noel, Carmem Miranda, Chiquinha Gonzaga e tantos outros.
Salve meus pais lindos e carnavalescos e meus irmãos fantasiados.

foto: álbum de família


domingo, 8 de fevereiro de 2009




(...) Em memória de meu pai, transcrevo suas palavras: “e, circunstancialmente, entre posturas mais urgentes, cada um deve sentar-se num banco, plantar bem um dos pés no chão, curvar a espinha, fincar o cotovelo do braço no joelho, e, depois, na altura do queixo, apoiar a cabeça no dorso da mão, e com olhos amenos assistir ao movimento do sol e das chuvas e dos ventos, e com os mesmos olhos amenos assistir à manipulação misteriosa de outras ferramentas que o tempo habilmente emprega em suas transformações, não questionando jamais sobre seus desígnios insondáveis, sinuosos, como não se questionam nos puros planos das planícies as trilhas tortuosas debaixo dos cascos, traçadas nos pastos pelos rebanhos: que o gado sempre vai ao poço.”

Raduan Nassar, Lavoura Arcaica
Foto: Eduardo Simões, Cadernos de Literatura Brasileira nº2, setembro 1996, Instituto Moreira Salles


quarta-feira, 28 de janeiro de 2009


Angústia pode ser não ter esperança na esperança. Ou conformar-se sem se resignar. Ou não se confessar nem a si próprio. Ou não ser o que realmente se é, e nunca se é. Angústia pode ser o desespero de estar vivo. Pode ser também não ter coragem de ter angústia – e a fuga é outra angústia. Mas angústia faz parte: o que é vivo, por ser vivo, se contrai.
(...) há um vazio sinistro em tudo? Há, sim, enquanto se espera que o coração entenda.

Clarice Lispector, A descoberta do mundo
Imagem: Goya

domingo, 25 de janeiro de 2009


(...) Nas sociedades burocratizadas e aburguesadas considera-se adulto aquele que se conforma em viver menos para não ter que morrer muito. Entretanto, o segredo da juventude é este: viver significa arricar-se a morrer e fúria de viver significa viver a dificuldade. (...)



Edgar Morin, Les Stars
ZM, junho de 86 (grifos dele)
Imagem: Alex Vallauri

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009


Ensinamento
Adélia Prado

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café,
deixou tacho no fogo com água quente,
não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

Poesia reunida, Editora Siciliano, 1991 - S.Paulo, Brasil

segunda-feira, 4 de agosto de 2008


Tudo tem o seu tempo


“Todas as coisas têm o seu tempo, e todas elas passam debaixo do céu segundo o tempo que a cada um foi prescrito. Há tempo de nascer, e tempo de morrer. Há tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou. Há tempo de matar, e tempo de sarar. Há tempo de destruir, e tempo de edifiar. Há tempo de chorar, e tempo de rir. Há tempo de se afligir, e tempo de dançar. Há tempo de espalhar pedras, e tempo de as ajuntar. Há tempo de dar abraços, e tempo de se afastar deles. Há tempo de adquirir, e tempo de perder. Há tempo de guardar, e tempo de lançar fora. Há tempo de rasgar, e tempo de coser. Há tempo de calar, e tempo de falar. Há tempo de amor, e tempo de ódio. Há tempo de guerra, e tempo de paz.”

Livro do Eclesiastes
Foto: Paula Freire, Horto Florestal, SP, julho de 2008

domingo, 20 de julho de 2008


No quase escuro do quarto de janelas entreabertas não vê nem ouve estrelas. Pulsa.
imagem: Airton Ribeiro, 2007

sábado, 5 de julho de 2008


Alterem-se as datas. E só, tudo o mais permanece preciso.

5 motivos para estar vivo em junho de 2003, segundo Jeanne Marie Gagnebin. E para continuar vivendo em 2004.

A vida me foi dada; tive uma infância protegida da miséria e aberta à beleza do mundo e da cultura. Transmitir essa beleza, mesmo transformando-a, é motivo de vida.
Entre as belezas do mundo: a música, especialmente Johann Sebastian Bach. E a poesia.

Os amigos: aqui e lá. Isto é, aqueles que sabem das fragilidades mútuas, da nossa relativa pouca importância e, por isso, são solidários, ternos, alegres também.

Poder caminhar durante horas: descalça na praia, com sapatos resistentes nos caminhos de pedra e de terra, sozinha, leve, em grupo, com mochila nas costas. Sentir a espessura do mundo na sola dos pés e no ritmo da respiração.

Não perder nem a faculdade de admiração (thaumazein!) nem a de indignação: ousar continuar afirmando que somente a vida justa, socialmente justa, é a feliz – e que somente ela permitiria morrer sem amargura.

Jeanne Marie Gagnebin é professora de filosofia na PUC/SP e de teoria literária na Unicamp, autora, entre outros, de "História e Narração em Walter Benjamin" (Perspectiva, 1994) e de "Sete Aulas sobre Linguagem, Memória e História" (Imago, 1997). Revista Trópico.
imagem: Paul Klee, red baloon


quarta-feira, 25 de junho de 2008


Dizer o quê? para quê? Melhor que cada um diga ou sinta o que lhe vier. A mim vem tanto. Memórias, músicas, minúcias. E cheiros, cores, gestos. Tudo é quase corpóreo. E, mesmo que suspenso há tanto tempo, ainda se mostra na janela. Ou fora dela. Quase sempre.
foto: museu da língua portuguesa

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Claro-escuro. Como as gentes.


TRADUZIR-SE
Ferreira Gullar

Uma parte de mim

é todo mundo:

outra parte é ninguém:

fundo sem fundo.

Uma parte de mim

é multidão:

outra parte estranheza

e solidão.

Uma parte de mim

pesa, pondera:

outra parte

delira.

Uma parte de mim

é permanente:

outra parte

se sabe de repente.

Uma parte de mim

é só vertigem:

outra parte,

linguagem.

Traduzir-se uma parte

na outra parte

- que é uma questão

de vida ou morte

-será arte?



foto: Tiradentes, dez. 2007

sábado, 31 de maio de 2008

E São Paulo pode ser bonita.
Depois de tanto, tanto tempo é o máximo que tenho a dizer. Continuo parca de palavras. Ao menos, de palavras para dizer.

sábado, 26 de janeiro de 2008








E não é que um dia ainda concordo que imagens dizem mais que palavras? Ao menos quando se tem pouco (ou nada) a dizer.
Quem diria?!

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007



(...) viver não cansa mas duvidar é exaustivo.

Ricardo Ramos, em A pitonisa e as quatro estações, um dos contos de Matar um homem, Livraria Martins Editora, 1970.

Confesso: sinto-me exausta.



foto: largo do arouche, São Paulo.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007


Desde sábado, quando assisti a algumas das cantatas de Bach, no Municipal de São Paulo, com o Coral Paulistano, sob a regência do maestro Roberto De Regina, este cartão, a imagem, o texto, o filme vira e mexe me vêem à cabeça. E me vêem também, renovadamente, a idéia de que Bach, além de nos encher os olhos d´água, nos ilumina, nos faz mais humanos, nos faz quase quase acreditar que Deus existe.
Todas essas sensações e maravilhamentos, 'devo' a um caro amigo. Obrigada, portanto, mais uma vez.

sábado, 24 de novembro de 2007

Relendo o que havia escrito antes, me lembrei que minha avó materna morreu hoje. Ou ontem, 23.
Um 24 de novembro (ou 23) há muitos, muitos, tantos anos.
Conheci tão pouco essa minha avó.
E a lembrança veio forte, manteve-se.
Tempo de morango? Talvez.
Ou talvez a data.
Ou ainda, talvez, o tecido da dança do Ismael Ivo.
Talvez tudo isso. Ou nada disso.
Fico pensando que uma coisa leva à outra e a vida faz e refaz como um bordado. Ou se faz e se refaz.
Usamos as linhas coloridas e variadas, preenchendo os riscos, até completarmos o desenho todo.
Ou não.

Clarice, ainda. E Hélio Pelegrino. E Ismael Ivo.




Clarice Lispector pergunta. Hélio Pelegrino responde.

- Hélio, é bom viver, não é? É, pelo menos, a impressão que você me dá.

- Viver? essa difícil alegria. Viver é jogo, é risco. Quem joga pode ganhar ou perder. O começo da sabedoria consiste em aceitarmos que perder também faz parte do jogo. Quando isso acontece, ganhamos alguma coisa de extremamente precioso: ganhamos nossa possibilidade de ganhar. Se sei perder, sei ganhar. Se não sei perder, não ganho nada, e terei sempre as mãos vazias.
Quem não sabe perder acumula ferrugem nos olhos e se torna cego - cego de rancor. Quando a gente chega a aceitar, com verdadeira e profunda humildade, as regras do jogo existencial, viver se torna mais do que bom - se torna fascinante.
Viver bem é consumir-se, é queimar os carvões do tempo que nos constitui. Somos feitos de tempo, e isso significa: somos passagem, movimento sem trégua, finitude. A quota de eternidade que nos cabe está encravada no tempo. É preciso garimpá-la com incessante coragem, para que o gosto do seu ouro possa fulgir em nosso lábio. Se assim acontece, somos alegres e bons, e a nossa vida tem sentido


imagem: Ismael Ivo, flagrado não sei por quem.


quarta-feira, 21 de novembro de 2007





Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu



Salve Chico. Que diz o que não se pode - ou não se quer - dizer em dias como estes.



imagem: Tiradentes, MG

quarta-feira, 14 de novembro de 2007



Morangos andam rondando minha cabeça. Os silvestres, os mofados. Os de Clarice e Macabéa, os de Caio, os de Bergman. Também os meus. Os da minha infância, tempo de vestido branco de fustão com morangos bordados. Tempo de morangos pequenos e raros na minha cidade quente, quente, onde brotavam laranjas, mamões, abacaxis, mangas. Nunca morangos.

E os morangos de agora. Não gosto mais de morangos nem de vestidos brancos. Vestidos brancos? ora... Quanto aos frutos, hoje são ácidos, são grandes, não brotam apenas no inverno.

Ainda gosto de vê-los, são bonitos. E só. Agora, quando morangos povoam minha cabeça não desembocam mais em desejo de comê-los e sim em lembranças e referências fundamentais.
É tempo, talvez.



imagem: murta, que não era rara como morango. Ao contrário, as árvores de murta perfumavam minha rua, minha cidade.
A foto eu achei aqui, não sei de quem é. Mil perdões pela falta do crédito.